Pequenos parceiros de grande valor
Com status de "segredo industrial", empresas de pequeno porte brasileiras são fornecedores estratégicos da indústria automotiva
Quando se pensa em indústria automotiva, normalmente se imagina empresas gigantes, com galpões enormes e milhares de funcionários. Essas empresas são a face mais conhecida do setor, expressa em marcas mundialmente famosas como Volkswagen, Ford, Fiat ou Toyota. Mas, além das grandes multinacionais, existem milhares de empresas de pequeno porte que atuam na indústria automotiva brasileira. Não na produção de veículos próprios, mas em atividades complementares às grandes indústrias. "A maior contribuição das pequenas empresas é com relação ao conhecimento do mercado brasileiro. Apesar dos fabricantes de veículos possuírem produtos globalizados, cada mercado é um mercado", explica Paulo Roberto Garbossa, da consultoria ADK Automotive.
Muitas dessas empresas de pequeno porte exercem funções altamente especializadas, nas quais levam vantagem justamente por seu tamanho, que favorece a flexibilidade e agilidade. Parte delas, com o passar do tempo e amadurecimento das parcerias com a grande indústria automotiva, cresceram e já são consideradas médias empresas. "Fornecedores que começaram pequenos possuem instalações sem luxo e com custo fixo baixo, com excelente equilíbrio na equação da quantidade de mão de obra e automação. Muitos ultrapassaram as fronteiras e trouxeram novas tecnologias, através de parcerias no exterior", avalia o engenheiro e consultor automotivo Francisco Satkunas.
Esses pouco conhecidos integrantes da indústria automotiva nacional são tão importantes que muitas vezes são tratados como verdadeiros "segredos industriais". Para essa pauta, foi solicitado a 40 das maiores indústrias automotivas no Brasil – incluindo fabricantes de automóveis, caminhões, motocicletas, motores e componentes – que indicassem, entre seus parceiros de menor porte, um que se destacasse pela criatividade. Dos 40 grandes fabricantes do setor, apenas quatro se dispuseram a revelar algum de seus pequenos fornecedores locais.
Ou seja, 90% das grandes indústrias procuradas escaparam do assunto de formas diversas. General Motors, Toyota e Agrale afirmaram explicitamente que não revelam fornecedores para pautas da imprensa. Já Fiat, Hyundai e PSA Peugeot Citroën argumentaram que não conseguiram "desenrolar a pauta", apesar dos vários telefonemas e e-mails trocados ao longo de um mês inteiro de apuração. Honda, Iveco, Scania, Nissan e Mercedes-Benz informaram que "não foi possível localizar parceiros com o perfil adequado". Mas a maioria das grandes empresas do setor preferiram simplesmente ignorar as solicitações de informações para a reportagem. Somente as fabricantes de caminhões Volvo e MAN e de automóveis Volkswagen e Ford colaboraram sem restrições.
O relevante papel desses pequenos parceiros nacionais e o medo de que possam ser "cooptados" por empresas concorrentes ajudam a explicar tanto sigilo. Afinal, o mercado automotivo brasileiro é um dos mais aquecidos do mundo e contar com fornecedores qualificados é fundamental para quem precisa atender uma demanda crescente. Além disso, a própria trajetória das quatro empresas parceiras indicadas dá pistas sobre as razões de tamanha preocupação. Todas desempenham atividades complementares, mas sempre de forma entusiamada, criativa e inovadora. Algumas conseguiram desenvolver no Brasil peças até então importadas, com materiais alternativos. Frequentemente efetuam sugestões aos fabricantes para melhoria de qualidade, redução de peso e de custos por conta de aperfeiçoamento nos processos produtivos. Outras dão contribuições relevantes para a imagem, a usabilidade e a atratividade dos produtos. Ou seja, são parceiros fundamentais, que geram economias expressivas e colaboram de forma decisiva com a lucratividade das grandes empresas do setor. Aliados que ninguém quer se arriscar a perder para a concorrência.
O certo é que ser parceiro de uma grande indústria automotiva pode ser um trampolim e tanto para uma empresa de pequeno porte. "Com a parceria com a Volvo, o faturamento multiplicou por 40 em menos de 18 anos", contabiliza Fabrício Stadler de Castro, diretor da gráfica paranaense Cidade Clima. No início dos anos 90, um diretor da Volvo passeava pela cidade de Palmeira e se admirou ao ver que o pequeno jornal local era impresso com tecnologia digital, em papel alcalino. "Ele quis saber onde era impresso aquele jornal, pois a Volvo estava com dificuldades com os fornecedores de manuais. Depois disso, a Cidade Clima foi convidada a participar de concorrências e assim nasceu uma grande parceria", relembra Fabrício.
Na época, a Volvo adquiria cada modelo de manual em lotes grandes e de vários fornecedores, gerando estoques volumosos. Funcionários da própria Volvo montavam os kits de manuais, colocando todas as informações de acessórios e componentes disponíveis, mesmo que o veículo não fosse fabricado com tal opcional. Hoje, os manuais são produzidos de acordo com a demanda específica de cada caminhão e ônibus fabricado e entregues direto na linha de montagem. Para isso, foi instalada uma unidade da Cidade Clima dentro da fábrica da Volvo. "Depois, passamos a fornecer peças em madeira, bolsa de macaco e de ferramentas, coifa de câmbio, telas e espumas. Hoje são aproximadamente 70 itens e correspondem a 60% dos negócios com o cliente", comemora o diretor da Cidade Clima.
O conceito da fábrica da Volkswagen Caminhões e Ônibus na cidade de Resende, no Rio de Janeiro – atualmente incorporada pela MAN Latin America –, sempre foi produzir veículos de carga e transporte coletivo que atendam as necessidades específicas dos clientes. Mas certas demandas vão além do nível de especificidade praticável em qualquer grande indústria. Muitas vezes, significam atuar de forma artesanal. "Nossa flexibilidade, além de ser fundamental para o negócio de modificações especiais, incentiva a rede de concessionários a propor novas ideias aos seus clientes finais. E essas ideias viram produtos sob medida", explica Bruno Balbinot, gerente sênior da BMB ModeCenter. O centro de modificações especiais vizinho à fábrica da MAN ajuda a adaptar caminhões e ônibus às diversas demandas de cada comprador, inclusive em veículos exportados para outros países. Iniciada há dez anos, a parceria permite o deslocamento de profissionais do centro de modificações especiais para linhas de produtos ainda inéditos da marca alemã. Quando questionado sobre os principais atributos de sua empresa, o gerente da BMB ModeCenter é sintético. "Nossa empresa é gerenciada de maneira dinâmica e temos uma comunicação informal e eficiente. Contamos com abertura para explorar o nosso potencial criativo", valoriza.
Uma característica aparentemente comum das pequenas empresas que se tornam parceiras da grande indústria automotiva, além da tendência ao crescimento, é o indisfarçável orgulho. "Nossa empresa é responsável pela montagem de sistemas de suspensão dianteiro, traseiro, quadro auxiliar e arrefecimento dos veículos produzidos pela Volkswagen nas plantas de Taubaté e São Bernardo do Campo. A montagem e entrega são feitas em sistema ’just in sequence’, com total interatividade com a equipe da Volkswagen", vibra Luiz Felipe Ballestero, gerente geral da SM Sistemas Modulares, sediada em Taubaté, no interior paulista. Ele acredita que as empresas de menor porte podem trazer lições importantes à indústria automotiva. "Muitas vezes, as grandes empresas têm processos decisórios bastante complexos", pondera Luiz Felipe.
Gratidão é outro dado comum aos "coadjuvantes" da indústria automotiva. "Foi a partir da Ford que mudamos a historia desta pequena empresa", admite Waldomiro Araujo Filho, sócio da confecção baiana W. Uniformes. "O alto nivel de exigencia deles nos fez melhorar nossos produtos e processos, abriu muitas portas. Hoje somos fornecedores de grandes companhias como Vale, Estaleiro Atlântico Sul, Lear, DHL, e exportamos para varios paises da África", orgulha-se Waldomiro. A parceria entre as duas empresas começou em 2000, ainda durante as obras de construção da fábrica de Camaçari. "Desenvolvemos um uniforme confortavel e moderno, que todos os funcionários do complexo utilizam, independentemente da hierarquia. A aceitação é tão grande que é comum encontrarmos pessoas de uniforme em shoppings e faculdades. Quando esteve na Bahia, a bisneta do Henry Ford se encantou com o uniforme e levou varias peças para os Estados Unidos", festeja Waldomiro.
Com o crescimento do mercado e a maior produção local, as parcerias entre as empresas "emergentes" brasileiras e as grandes indústrias automotivas tende a se expandir. No entanto, da mesma forma que os veículos importados de países como China e Índia já preocupam os fabricantes de automóveis instalados no Brasil, os pequenos e médios fornecedores também estão atentos. "Muitos querem exportar para o nosso mercado a preços inferiores aos produtores locais, o que pode se constituir num sério risco para toda a cadeia produtiva", alerta o consultor Francisco Satkunas.
Trajetoria de uma parceria em evolução
Até a década de 70, todas as fábricas de veículos instaladas no Brasil eram bastante verticalizadas. Ou seja, produziam a maior parte dos componentes e executavam a montagem de todos os componentes adquiridos fora. "Era uma forma de assegurarem o controle quase que absoluto do processo. As fábricas tinham suas equipes de segurança, manutenção, ferramentaria, frotas de caminhões próprias e algumas tinham até mesmo padaria interna para dar suporte à equipe do restaurante da fábrica", relembra o engenheiro Francisco Satkunas, de 66 anos, que foi diretor da General Motors e atualmente é consultor e membro do conselho da SAE Brasil – e observador atento da história da indústria automotiva nacional.
Nos anos 90, aconteceu a abertura do mercado brasileiro aos veículos importados e várias novas marcas começaram a se instalar no país. Para dar suporte ao crescimento da demanda, surgiram os chamados sistemistas. São empresas que fabricam conjuntos e subconjuntos completos – bancos, suspensões, sistemas de arrefecimento, ar condicionado, etc –, terceirizando as tarefas que originalmente eram dos fabricantes de veículos. "Os preços dos sistemistas passaram a ser mais competitivos e os estoques diminuíram com o ’just in time’ e a montagem sequenciada", recorda Satkunas.
Os pequenos fornecedores passaram a fornecer também aos sistemistas. "Mesmo empresas internacionais, que podem ter sucesso no exterior, aqui necessitam de parceiros locais com conhecimento e histórico, para um melhor direcionamento dos produtos e serviços", pondera o consultor Paulo Garbossa, da ADK Automotive. Fabricantes de veículos e sistemistas motivaram e treinaram essas empresas menores para produzirem com qualidade, eficiência e sem desperdícios. "Para ser competitivos, precisamos simplificar a peça, sempre atendendo às especificações técnicas e requisitos legais. Desenvolvemos lonas de proteção das partes elétricas para chassi de ônibus que atendiam às mesmas exigências, por um custo muito mais baixo. O pessoal da matriz da Volvo veio conhecer o processo para levar a ideia para a Suécia", admira-se Fabrício Castro, da empresa paranaense Cidade Clima.
Com o tempo, as parcerias mais efetivas foram se consolidando. E muitas pequenas empresas ligadas ao setor automotivo passaram a exportar e cresceram. "A terceirização da segurança, dos restaurantes, da manutenção, do transporte de peças e de todas áreas de apoio permitiu que as fabricantes passassem a focar totalmente no veiculo final, libertando-se das atividades acessórias. Aumentaram sua competitividade, produzindo veículos com maior conteúdo tecnológico", reforça Satkunas.
A partir de 2000, com o crescimento do mercado consumidor, surgiram novas fábricas descentralizadas, com novos conceitos operacionais. A Fiat, por ser localizada em Betim – distante do tradicional parque industrial automotivo do ABC Paulista – já havia implementado nas décadas anteriores a chamada “mineirização”, incentivando os fornecedores a se instalarem ao redor da fábrica, para reduzir custos logísticos e estoques de peças. A General Motors em Gravataí, a Ford em Camaçari e a VW Caminhões e Ônibus em Resende seguiram o mesmo conceito de se cercarem de fornecedores de pequeno, médio e grande porte. "Novos fabricantes asiáticos que planejam fábricas no Brasil já acenam com a adoção desse modelo de negócios, que tem provado ser o mais eficaz", acredita Satkunas.